quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Zé Lourenço e o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto

Pe. Vileci Basílio Vidal – CPT

Crato – Setembro 2010

A história dos beatos no Nordeste tem inicio com o Pe. Ibiapina. Daí surge, então, beatos como Antonio Conselheiro que se confunde com a história de Canudos na Bahia e tempos mais tardios surge o Caldeirão sobre o comando do Beato José Lourenço que levava uma vida de penitente sob a orientação do Pe. Cícero.

Caldeirão ficava nas terras de herança do Pe. Cicero no município de Crato. Torna-se uma comunidade organizada pelo beato Zé Lourenço com o objetivo de conduzir grupo de trabalhadores rurais a conhecer e viver uma vida digna, abundante pautada pela oração e pelo trabalho. O verdadeiro “milagre do trabalho”, nesta comunidade, foi transformar o solo estéril numa terra produtiva.

A área do Caldeirão era 900 hectares, localizada numa região semiárida com pouca vegetação, solo nu e pobre em nutrientes, topografia acidentada e com vários grotões.

A comunidade do Caldeirão nos inspira na discussão sobre a convivência com o semiárido, considerando que se trata de uma experiência em uma época de extrema miséria no campo devido a impossibilidade que tinham os trabalhadores de acesso a terra perpetuando a super exploração, a miséria e a fome entre os trabalhadores do campo. Mas, na comunidade do Caldeirão se estabelece uma verdadeira agrovila com centenas de casas, dois açudes, engenho de rapadura, casa de farinha, armazém para estocar alimentos, oficinas de marcenaria, ferreiro, aviamento de couro, barro e cerâmica, grande variedade de frutas, cultivo de cereais, criação de bois, porcos, cabras, galinhas, animais de estimação domésticos (cães e gatos) e selvagens domesticados (emas, mocós, papagaios). Todos eram criados com liberdade. Tinha também alguns cavalos para o uso do beato.

Em 1926, a população inicial do Caldeirão era entre 200 a 300 pessoas e teve um aumento considerado com a seca de 1932 quando as pessoas procuravam a comunidade para não morrer de fome. Após a invasão policial em 1936, a população estava entre 1500 e 2000 habitantes.

Os destinatários da comunidade eram os romeiros mais desvalidos, os fugitivos de perseguições, aqueles que precisavam ser reeducados no trabalho e que chegavam a Juazeiro sem perspectiva e o Pe. Cicero destinava para morar com o beato Zé Lourenço. A primeira experiência de comunidade produtiva foi realizada pelo beato no Sítio Baixa Dantas em Crato, numa terra arrendada, que, vendo prosperar num espaço também de dez anos, o proprietário pediu a desocupação e, por conta disso, o padrinho (Pe. Cícero) orientou para que fossem morar em suas terras no Caldeirão.

A utopia da comunidade era abundancia. Os trabalhadores acreditavam que era possível um mundo onde todos desfrutem, igualmente, das riquezas produzidas. Esta crença tratava-se de uma herança espiritual do Pe. Ibiapina que interfere na mudança estrutural religiosa do Cariri na década de 1860 e 1870, substituindo o mundo das profecias assombradas (medo do inferno) pelo realismo da caridade pratica com o lema “nada faltará” pregado pelos beatos e beatas nos sertões nordestinos: bastava trabalhar e dividir os frutos do trabalho que haveria abundancia para todos. Essa foi a utopia também presente em Canudos e pregada pelo beato Antonio Conselheiro que chegou a fazer missão com Pe. Ibiapina em Quixeramobim e Sobral no Ceará.

Tanto Canudos como Caldeirão, expressa vantajosas experiências camponesas de convivência com o semiárido onde tudo era de todos: se produzia muito e se armazenava. Todos trabalhavam em mutirão, comiam-se junto (grupo de mulheres preparava a comida), os trabalhos eram divididos por tarefas segundo a aptidão de cada um. Enquanto uns trabalhavam na roça, outros pastoravam o gado e trabalhavam nas oficinas. E assim havia ocupação para homens e mulheres. Acontecia muita festa no tempo da moagem. E durante o ano, os acontecimentos religiosos ficavam por conta da irmandade da “Santa Cruz do Deserto”.

A comunidade era organizada pelo tripé: trabalho, oração e abundancia. O trabalho está ligado a penitencia e sacrifício, ao passo que abundancia vem como compensação ou recompensa de todo o esforço feito. Era com esse entendimento que o beato educava aquela gente desvalida que lá chegava. O alimento era o de mais sagrado que podia existir, por isso servia tanto para alimentar o corpo como para alimentar a alma. Ali havia fartura e abundancia e não era transformada em mercadoria. Referencia dada pelos remanescentes ao Caldeirão: “lá era lugar de abundancia e tinha tudo do que se precisava”. O que se vendia, com o dinheiro, se comprava medicamento e tecido.

No Caldeirão, o trabalho era voluntário, as pessoas eram livres para escolher aquele estilo de vida, mas não eram livres para explorar os outros, viver a custa da “energia” (do suor) dos outros – mais valia, ou seja, força do trabalho alheio. Portanto, quem não quisesse trabalhar também ali não morava: “lá era só de rezar e comer muito e trabalhar muito”.

Por conta dessa experiência o beato Zé Lourenço foi chicoteado muito pelas autoridades e coronéis da época, por ser camponês pobre e negro. Tanto é verdade que dois anos depois da morte do Pe. Cicero bombardearam o Caldeirão (primeiro bombardeio da FAB que aconteceu no Brasil). Em setembro de 1936 aconteceu a primeira expedição destruindo toda a plantação e roubando os pertences da comunidade e a segunda expedição aconteceu em maio de 1937 quando se deu o bombardeio, destruindo o Caldeirão e matando quase mil pessoas.

O Caldeirão tornou-se sinal de liberdade camponesa onde prosperou uma vida baseada na experiência das primeiras comunidades cristãs (At 2, 42-47). E nos tempos atuais é referencia histórica para as Comunidades Eclesiais de Base e Quilombolas da região. A sua história também se confunde com a história do beato líder José Lourenço que organizou a comunidade com padrões de comportamento e forma de relacionamento que resultou numa rica produção de saberes.

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